quinta-feira, 1 de maio de 2014

Não se pode ganhar todas

Um dia você se decidiu a fazer CED em vez de resgate, pois sabe que não dá pra salvar todo mundo. Então, percebendo a importância da castração no combate ao abandono animal, resolve que este será seu trabalho. Aí começa. Captura. Esteriliza e Devolve, quase duzentos gatos da sua cidade. Tem firmeza no coração, suficiente pra devolver a um mato, gatinhos que, em outras circunstâncias, poderiam estar sendo amados e aquecido sob um edredom.

E faz isso, muito feliz, sem nenhum peso na consciência.

Às vezes, porém, aparecem gatinhos mansos, gatinhas mamães e sua caixa de minigatos, filhotes maravilhosos, que, não só merecem, como podem e devem receber um lar, pois são sociáveis o suficiente pra se esfregar numa mão que o queira acariciar. Aí você Captura, Esteriliza e Doa, com muito cuidado.

Mas, porque a vida no mato, assim como nas ruas, não é fácil, os perigos são iminentes, muito maiores do que aqueles a que estão sujeitos gatos com tutores e lares. Tem perigo de cobra, de lagarto, de cachorro solto, de envenenamento, de atropelamento, de violência. E você vê que seus gatinhos, mesmo agora com uma grande chance de ter uma vida melhor por estarem castrados, perdem essa chance, simplesmente por não terem um lar pra chamar de seu.

E você se depara com uma das "suas" filhotas, de quatro meses, recém castrada, atropelada, agonizando. Leva pra tentar ajudar, mas ela não sobrevive. Tá bom, não deu, pelo menos morreu sem dor, embrulhada num cobertor térmico. Assim como o filhote que não sobreviveu à anestesia, por ter má formação no coração e nos pulmões.

Filhota - atropelada uma semana após a castração

Alguns dos nossos capturados foram vítimas do abominável ser humano, como os nove envenenados na colônia original da Marli, por motivos até hoje desconhecidos. Ou a Mami, linda, mãe do Maxi, do Micky e da Liza que, porque passou da limite da calçada, foi exterminada com o famigerado chumbinho.

Mini - vítima de envenenamento em massa


Mami - assassinada com chumbinho


Tem também a gatinha linda do Morro, atropelada pelo dito dono da Cuore, que desceu a rua, com seu carro em velocidade acima do ideal, pegando-a em cheio, sem chance de se defender, de ser socorrida. 

Boneca - gatinha atropelada e morta pelo "dono"da Cuore


Ou a Ônix, do centro, também atropelada; o Frajola, lá do começo, minha primeira perda, atropelado. As gatinhas de uma colônia pequena num centro comercial, exterminadas por cretinos intolerantes.

Frajolico - a primeira perda


Mortes inevitáveis de certa forma, porque não vimos, não pudemos fazer muita coisa.

Só que tem aqueles que até teriam uma chance, não fossem as circunstâncias. Seja pelo temperamento, seja pela condição financeira, seja pela falta de lar.

Tivemos uma gatinha de telhado, muito fofa, mas muito arisca. Fizemos a captura e ela tinha prolapso retal. Se fosse a minha gata, a sua gata, mansa e com uma rotina de família, a chance de ficar boa seria muito alta. Só que ela não era mansa, não era minha, não era de ninguém. Morava no telhado com seus bebês mais velhos e os mais novos, naquela vida dura de gato de rua. E, na impossibilidade de ser tratada no pós cirurgia, por ser arisca, por não ter um lar, não ter possibilidade de se fazer curativo, não foi devolvida.

O outro, ainda filhote, filho da minha freguesa mais escorregadia, a Filha Dela, que mora embaixo de uma casa, ficou doente, também levamos ao veterinário, mas não dava mais pra ele. A alimentadora suspeita de veneno. A veterinária suspeita de problemas de saúde, respiratórios, graves e incuráveis para um gato que não pode ser tratado por seu próprio temperamento e condição de vida. E, mais uma vez, para que o sofrimento acabasse, não foi devolvido.

E teve a linda Cuore.

Gatinha que, oficialmente, tinha donos, tinha um teto, mesmo morando na garagem, sem acesso ao interior da casa, nem dos corações. 

Socorrida pela alimentadora (porque os tutores nem se importaram), por sua respiração ofegante e falta de apetite, foi levada ao veterinário, com suspeitas de infecção pulmonar, trauma, ou qualquer outro problema de solução relativamente fácil. Fim de feriado, radiografia e o triste diagnóstico de cardiopatia. Os donos? nem quiseram saber, preferiram a doação.

Uma gatinha linda, doce, amada, querida, carinhosa, mas que precisava fazer muito esforço pra conseguir oxigênio. Colocava seu narizinho pra fora da grade e puxava, puxava, tentando conseguir um pouquinho. Porque seu coração era grande demais. 

Solução? Até que teria: um lar definitivo, no qual os tutores tivessem condição financeira de levá-la ao cardiologista periodicamente, com gastos aproximados de R$ 300,00 por consulta. Pra sempre, mas o sempre seriam mais uns poucos meses. Quem adotaria um animal, sabendo que dali a pouco tempo teria que passar pela perda? 
Precisaria de tutores que não tivessem nem crianças, nem outros animais, muito menos gatos, porque ela não poderia passar por nenhum tipo de estresse, sob risco de morte instantânea. 

E você não tem a condição financeira. Seu projeto não tem a condição financeira. O LT que a acolheria tem outros 18 gatos e nenhuma chance de se garantir cem por cento de tranquilidade, sem estresse. Muito menos ainda, você tem um adotante especial.

E vem a parte mais difícil de se fazer CED. Quando você precisa se conscientizar de que não pode usar seus parcos recursos de castração para salvar um gato em detrimento de outros vinte.Manter um animal sadio em LT é muito caro, imagine um animal doente, com despesas contínuas e altas. Não dá. Não é nosso foco. Por mais que nos doa. 

Claro que, se os donos fossem responsáveis, ela teria sido devolvida. Só que eles não cuidaram direito dela antes, não se importaram que a tiramos de lá, não cuidariam depois e ela morreria asfixiada, lentamente, com muito sofrimento. 

A morte de um gatinho de rua, seja ela como for, é sempre uma dor pessoal, pois cada um é um filho menos favorecido. E, se por um lado, a impotência é revoltante, ela nos move a continuar com o trabalho de castração e devolução da maioria, mas, quando for o caso, insistindo na doação responsável, para pessoas comprometidas, com condição financeira e disposição interna em gastar dinheiro com tratamento veterinário quando necessário. Pessoas que permitam ao gato, ser criado dentro de casa, debaixo das cobertas. 

Não adianta doar pra qualquer um. Muitas vezes, ter uma casa, não significa ter um lar; ter "donos", não significa ter uma família. Cuore que o diga. 

RIP linda gatinha.



Maria Cecília Quideroli
Operação Gato de Rua